JURA EM PROSA E VERSO
A POESIA POPULAR
AS TROVAS E A CULTURA POPULAR
Texto de J.G DE ARAÚJO JORGE
Coleção “Trovadores
Brasileiros”
Organização de Luiz Otávio e J. G. de Araújo Jorge (extraído do site www.jgaraujo.com.br)
J.G. de Araujo Jorge
* * *
Somos felizmente um povo inteligente e de grande sensibilidade.
Se querem um exemplo da inteligência do povo brasileiro, de sua filosofia, do
seu senso de humor, procurem observar as frases que comumente se encontram
escritas nos parachoques ou na própria carroceria dos caminhões que trafegam
pelas estradas.
São de uma graça e de uma acuidade, às vezes profundas, em sua simplicidade.
Sozinhos, viajando durante dias, longe do lar e de seus amores, os motoristas de
caminhões são como os marinheiros. Mas a permanente presença da terra, tira-lhes
á saudade aquele tom de grande lirismo do homem do mar, realmente desligado de
tudo, cercado de silêncios e
e horizontes. E espouca em seus espíritos a sátira, a alegria boemia dos que
fazem a vida de aventuras, em prazeres de cada momento.
Já pensei em comprar um caderninho para anotar as frases que leio nos
parachoques dos caminhões. Tenho a convicção de que acabaria por ter um
verdadeiro retrato do espírito popular, um verdadeiro "compêndio" dessa
filosofia de vida, tão interessante e cheia de sutilezas, do homem da rua.
Uma das trovinhas que compõem o meu "Cantigas de Menino Grande" eu a fiz,
aproveitando
um pensamento de uma dessas frases que vi num caminhão, quando dirigia meu
carro rumo a Friburgo. Dizia o seguinte
"Eu dirijo, Deus
conduz".
Nada mais, simples e profundo. E pensando no que acabara de ler
fui arrumando mentalmente
os outros versos, já que o pensamento vinha num verso de sete sílabas. No meio
da serra a quadrinha estava pronta:
"No meu carro vou tranqüilo
tenha a estrada sombra ou luz,
pois bem sei que ao dirigi-lo:
- eu dirijo, Deus conduz.
Numa crônica que preparei para volumes anteriores desta coleção,
afirmei:
"Do mesmo modo que os
provérbios e adágios representam o pensamento do povo que se vai cristalizando
através do tempo, as trovas, são a sua alma. E os poetas, tocados pela "graça"
das trovas, os intérpretes dessa alma."
O povo fala em versos, sem sentir e, instintivamente, nos seus provérbios e sentenças, procura a rima, que é um elemento oral de enfeite e de memorização mais fácil. Observem os provérbios. este, por exemplo, bem conhecido:
"Água mole em pedra dura
tanto bate até que fura."
Dois. versos de sete sílabas, rimando.
E este outro:
"Ha sempre um chinelo
velho
Pra um pé doente e cansado."
Glosei, também, numa trova:
O tal ditado é um
conselho,
não te mostres desolado...
"Ha sempre um chinelo velho
Pra um pé doente e cansado..."
Nem tal fato é de se estranhar, quando sabemos que as línguas
neolatinas esgalharam-se do tronco secular do velho latim, na língua poética,
dos trovadores medievais, nas suas cantigas.
Sobre trovas populares e anônimas, escrevi, na crônica citada :
"Uma trova, (ou como a chamam também, uma
quadrinha) é tanto mais expressiva quanto maior o grau de fidelidade ou de
identidade do poeta com o sentimento popular. Cai então, pode-se dizer, no gosto
do povo, que a recolhe, decora e divulga, e sua expansão se faz de modo
permanente, extenso e profundo.
Seu processo de popularização é tamanho, que ela acaba desgarrada de quem a
criou, filha de ninguém. Ou melhor: lhe arranjam um pai, lhe atribuem uma
paternidade, ou várias, o que vem a ser a mesma coisa. É uma trova anônima.
Glória efêmero e paradoxal. No momento mesmo em que a atinge, o trovador a
perde. E são quase sempre, as maiores trovas, aquelas que acabam no anonimato,
emaranhadas em meio a dúvidas e suposições. Tratando-se de pequenas composições
poéticas, facilmente reproduzíveis, acontece com as publicações o mesmo que se
dá com a difusão oral. Jornais e revistas de toda a parte, álbuns e cadernos de
poesia as divulgam com autores diversos, tornando cada vez mais difícil a
identificação, e mais penosa a pesquisa."
"A Ilíada" e a "Odisséia", memorizadas durante séculos pelo povo grego, e
mandadas escrever por Psístrato, guardaram a glória de Homero, ainda que
lendária, intacta. Eram grandes poemas. Mas as pequeninas trovas, estilhaçam
qualquer glória, e torna-se impossível identificar através dos tempos, os nomes
dos seus verdadeiros autores, quando elas caem “na
boca do povo”
* * *
Mas, trovas populares e anônimas, não são apenas as trovas "eruditas" dos
grandes poetas, as trovas literárias, que um dia se perdem no rio da grande
popularidade, afogando seus autores. São também as trovas rústicas e imperfeitas
que nascem da alma do povo, na boca dos cantadores, dos violeiros, dos
sanfoneiros, dos poetas populares anônimos que enxameiam pelo interior do Brasil
e de Portugal.
Verdadeiros filões de ouro de nossa sensibilidade e de nosso espírito.
Na sua obra, farto acervo de folclore e poesia, "Mil
quadras brasileiras",
( "Mil
quadras populares brasileiras" (Contribuição ao folclore). Recolhidas e
prefaciadas por Carlos Góis. (Catedrático do Ginásio Mineiro, membro da Academia
mineira de Letras). F. Briguet & Cia., Editora. Rio de Janeiro. 1916).
Caros Góis observa:
“É no interior do país, longe
do bulício convencional e cerimonioso das grandes cidades,
onde mais intensamente floresce a poesia popular.
Quem se internar no sertão do Brasil, verá, na razão direta da distância dos
grandes
centros populosos, a expandir-se a alma do povo em expressões rítmicas de um
cunho espontâneo, subitâneo, flagrante. Só quem como nós já assistiu de viso,
aos descantes ao som da viola e do violão, poderá aquilatar do grau de fluência
e espontaneidade que jorra da musa popular".
Ainda recentemente, aqui no Rio, tive a oportunidade de conhecer os irmãos Batista, (Otacílio e Dimas), exímios cantadores e improvisadores do Nordeste (de Campina Grande), e outros violeiros e repentistas, alagoanos e baianos. Durante horas, com seus violões ao peito, lançam-se reciprocamente desafios, e os versos vão brotando em catadupas, com uma espantosa facilidade, ricos de verve e imaginação.
Rodolfo Cavalcanti, que é, na Bahia, o Presidente do Grêmio
Brasileiro de Trovadores, é um poeta popular típico do Norte. Homens simples,
emotivos, sem quase instrução, com uma poesia fácil e "bem
falante", compõe longos poemas a propósito de tudo. Publica-os em folhetos
que ele mesmo vende nas ruas de Salvador. E vive disto, como verdadeiro trovador
de seu tempo.
Já se começa a dar valor também a essa manifestação literária do povo
brasileiro.
Os próprios críticos de gabinete, desligados até agora das raízes de nossa
formação literária voltam-se para o estudo e a observação de extraordinário
manancial de riquezas. O atual surto de trovadores, verdadeiro movimento ,de
incentivo à poesia popular, obriga-os a reconsiderarem suas atitudes puramente
intelectuais, e a perceberem o que há de autêntico e real nessa manifestação -de
nossa sensibilidade e de nossa cultura.
Não foi sem razão, que defini:
Ó trovador: professor
de poesia popular!
Com suas trovas de amor
o povo aprende a cantar!
* * *
Os méritos da publicação deste volume de trovas populares ( anônimas) se devem a
Luiz Otávio, em seu trabalho de pesquisa verdadeiramente beneditino, em favor da
trova.
Ao seu trabalho, me associei de espírito e coração.
Este trabalho é apenas um punhado de 100 trovas apanhadas por Luiz Otávio entre
milhares de trovas populares (portuguesas e brasileiras) que já conseguiu
recolher.
Uma amostra, portanto, valiosa, do cancioneiro popular do Brasil e de Portugal.